À volta das letras com Pedro Eiras sobre “O Purgatório”
Depois de Inferno (2020), a sua estreia na poesia, Pedro Eiras publica na Assírio & Alvim o livro Purgatório. Neste segundo volume de um tríptico, o autor revisita e metamorfoseia a obra-prima de Dante Alighieri. Desta vez, é altura de caminhar pelos sucessivos círculos rumo à visão pungente de Purgatório, numa profunda reflexão acerca do mundo contemporâneo, como refere neste À volta das letras.
Professor, investigador, ensaísta, dramaturgo, leitor compulsivo, poeta…
Sim, e gostaria de multiplicar ainda muito mais essa lista de nomes – de inventar formas para as quais não há nome nenhum, talvez não haja nunca…
De que forma tomou a literatura “conta” da sua vida?
A vida é linguagem (todos os dias falamos, escrevemos, enviamos emails e sms, pensamos em silêncio); e a literatura é linguagem em estado de festa. Nesse sentido, a literatura nem sequer invadiu a minha vida: a vida já é feita de literatura.
Em quase 20 anos, escreveu mais de vinte livros. Primeiro a ficção depois a poesia, em 2020. O que o levou a seguir este trajeto?
Nunca houve uma decisão, um projecto prévio. Acontece assim. Por razões misteriosas, os textos que escrevo procuram certas formas. Muitas vezes isso tem a ver com livros que leio, com a sedução de determinadas obras em determinados momentos; ou então com circunstâncias tão acidentais como desafios e encomendas. Ou com outras razões que desconheço. Quanto à poesia, bem, é uma enorme surpresa para mim mesmo. Já tenho dito isto, e é pura verdade: tenho um medo sagrado da poesia. E sempre pensei que publicaria o meu primeiro livro de poemas pelos oitenta, noventa anos… Publiquei Inferno com quarenta e cinco. Admito que esta é uma frase insólita, mas, para mim, foi uma estreia precoce…
E o teatro, onde entra ele nesta caminhada?
O teatro é, sempre foi, um universo mágico para mim. Tem a ver com a infância, com os jogos de faz-de-conta. O teatro é o modo como continuamos a fazer-de-conta em adultos. E também o modo como recusamos a identidade da nossa vida, o modo como inventamos um universo com um simples gesto. Há muito tempo que não escrevo para o teatro, mas nunca deixei de estar fascinado por esse lugar de exploração do imaginário.
O ato de escrever é para si uma tarefa calma, prazerosa, ou difícil e dolorosa?
Só escrevo calmamente um texto burocrático; o prazer mistura-se com o horror e o fascínio e o júbilo; reescrever e corrigir é difícil, por vezes dolorosíssimo (e sempre imprescindível). Mas o essencial talvez seja isto: escrevo numa espécie de transe (profano, claro; mas transe), num esquecimento de mim mesmo. Ao contrário do que sugerem as redes sociais, parece que Hemingway nunca disse «Write drunk, edit sober». Mas penso que há aí uma grande verdade. E claro que aquele «drunk» não precisa de ser forçosamente levado à letra…
Que fascínio exerce sobre si Dante Alighieri?
O fascínio de uma completude, de uma dicção integral do mundo: tudo está na Comédia. É o mesmo sonho de um esgotamento do texto poético ou literário que obceca depois o Ulysses, ou The Infinite Jest… E Dante, para isso, ainda inventa uma língua, quer dizer, eleva definitivamente o italiano a uma língua capaz de dizer este mundo e o outro (agora sou eu que uso a expressão à letra…).
Com o “Purgatório” dá seguimento ao tríptico poético iniciado com “Inferno”. De que forma surgiu a ideia de avançar com este, digamos, projeto poético?
Sou fascinado pela matriz judaico-cristã do nosso pensamento (bem sei, não é a única, seria preciso pensar também o modelo grego antigo, as cosmovisões orientais, etc.). Podemos ser crentes ou descrentes, agnósticos ou ateus, mas partilhamos conceitos como bem e mal, culpa, castigo, perdão… Estes meus poemas partem dessas palavras: há muito «remorso» no Inferno, «esperança» no Purgatório, e haverá determinadas palavras sob severo escrutínio no Paraíso…
Não teve receio da avaliação do público e, sobretudo, do seu público?
Não, de maneira nenhuma. Tenho receio das palavras, das ideias, da memória, de mim mesmo, das entrelinhas, da literatura, de Dante, tenho receio de tudo – mas não, nunca, da «avaliação do público».
Disse certa vez sobre o “Inferno” que «este é um livro para me contradizer». De que forma surge essa contradição?
Escrevo contra mim mesmo. Escrevo para me testar. Para pensar nos limites do meu pensamento, no lugar em que outro pensa, no lugar em que a verdade caduca ou se metamorfoseia. E o Inferno está cheio de vozes, de pontos de vista que nem sequer me pertencem. Há muitos poemas escritos na primeira pessoa, mas essa pessoa não sou eu; são vozes, ecos, recordações e imaginários de outras vidas, o contrário da minha vida, a contradição que levo comigo.
E as condenações, tantas as que encontramos no livro…
Sim, é um livro sobre as condenações, muitas vezes sobre as auto-condenações, e é um juízo, um julgamento, um recurso de instância superior: o Inferno observa os condenados, mas volta a interrogar as suas culpas, e leva o próprio tribunal a julgamento. (Sim, há um terrível, terrível orgulho nesta vontade de julgar.)
Voltemos ao “Purgatório”. Refere que este segundo livro «é uma profunda reflexão acerca do mundo contemporâneo». A que conclusão chegou?
Será que posso fugir a essa pergunta, e deixar que os leitores respondam?…
São os pecados presentes no “Purgatório” mais perdoáveis e, talvez um pouco menores?
São «pecados» estranhos, «pecados» por omissão, por distração; diluídos na esperança, essa palavra ambígua… Aquilo que o Inferno decide – o Purgatório deixa em suspenso. Nesse sentido, este talvez seja um livro mais interrogativo, cheio de ressalvas, recursos, dúvidas.
Deve o livro ser lido de ponta a ponta ou aleatoriamente?
Rigorosamente de ponta a ponta, sem qualquer desvio, atalho ou salto. Sem parar para dormir. Nem para respirar. Deve ser lido muito devagar – mais devagar – mais devagar ainda. (Não é por ser este livro, não é por ser meu; é porque todos os livros, penso, devem ser lidos assim.)
Há livros a mais no mundo? Se há porque continua o Pedro a escrevê-los?
Certamente há livros a mais, sim. Mas nunca encontraremos o livro certo se não escreveremos também os livros errados.
É Professor de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Gosta de ensinar?
Gosto muito de ler com os estudantes. De andar com eles à volta das palavras – às vezes com as sílabas, com as letras, com os sinais de pontuação. Depois, gosto de voltar a ler, e percebemos que já não é bem o mesmo texto. E depois descobrimos que cada palavra afinal pode ter outro significado (ausente de todos os dicionários). Então voltamos a ler, e o texto está outra vez diferente. E compreendemos que temos de ler ainda mais devagar, outra vez, mais outra vez…
Assume e concorda com a importância do papel de professor num certo abrir de mentalidades das gerações mais novas?
«Abrir de mentalidades» parece-me uma expressão um pouco pesada; quando a aula corre bem, vejo-me mais como um desencaminhador… E, já agora, quem abre a mentalidade de quem? Uma boa aula é uma aula em que aprendo mais do que ensino…
E o paraíso desta trilogia poética já está pronto?
Sim. Não. Completamente. Jamais.
