À volta das letras com Àlex Tarradellas sobre “Resistir ao Tempo”

Volvidos mais de vinte anos desde o último esforço para dar a conhecer uma antologia de poesia catalã aos leitores portugueses, “Resistir ao Tempo” é um novo fôlego na promoção desse território prenhe de vozes singulares. Desde as suas origens até à atualidade e numa edição bilingue, esta antologia entrega-nos uma nova Catalunha por descobrir. como nos explica neste À volta das letras com Àlex Tarradellas.

Como surgiu este livro?
Há vários anos que eu e a Rita Custódio tentamos trazer para Portugal a literatura catalã. Apesar de ser uma língua tão próxima, são poucos os portugueses que leem diretamente em catalão. Há cinco ou seis anos decidimos deixar de sonhar e arregaçámos as mangas para tornar realidade um projeto ambicioso, mas totalmente necessário: aproximar a poesia catalã dos leitores portugueses através de uma antologia. A participação do Sion Serra Lopes foi fundamental e muito enriquecedora ao longo de todos estes anos. Somos os três muito diferentes, mas acho que nos complementámos muito bem.

O que vos levou depois de 20 anos a voltar a pegar neste tema?
É verdade, a última antologia, preparada por Egito Gonçalves, foi publicada pela Limiar há mais de vinte anos, em 1994. Mas, antes dessa, só houve a do Manuel de Seabra em 1974 (Futura) e a primeira de todas, em 1972, da Manuela Rocha (Centelha). Nos três casos abrangeram um período concreto. A nossa intenção foi proporcionar uma visão panorâmica para ressuscitar o interesse pela poesia catalã e, ao mesmo tempo, oferecer uma amostra prolongada no tempo.

Resistir ao Tempo é o título. Qual o motivo desta escolha?
Esta escolha compreende o início da poesia catalã, com Ramon Llull no século XIII, e percorre toda a tradição lírica até terminar com os poetas nascidos no final dos anos 60. Ao longo de todo o percurso, o tempo é uma temática constante. Por outro lado, julgámos importante que a antologia também tivesse um carácter reivindicativo. Não só, como é óbvio, mas também.

O que é que carateriza e, por outro lado, diferencia a poesia catalã?
É impossível enumerar só uma característica. Aliás, ao selecionarmos os poemas procurámos dar uma certa polifonia à antologia, não só na forma, mas também no conteúdo. Uma das características que ao mesmo tempo pode diferenciá-la de outras líricas é a consciência e a responsabilidade de escrever numa língua que ao longo da História foi ameaçada, proibida, ignorada e silenciada, mas que conseguiu resistir ao tempo.

De que forma pode esta poesia atrair e cativar os leitores portugueses?
Um dos critérios que seguimos na escolha foi mostrar alguns poemas que tivessem uma versão musicada. Em Resistir ao Tempo encontram-se poemas cantados por Raimon, Maria del Mar Bonet, Lluís Llach, Joan Manuel Serrat, Ovidi Montllor, Sílvia Pérez Cruz e muitos mais. A nossa intenção é que o leitor se vá surpreendendo com o tempo, sem pressa. Por outro lado, esta antologia, mais do que ter um fim académico, foi pensada para os leitores de poesia. No entanto, também defendemos a importância de tirar a poesia do pedestal e aproximá-la de toda a gente. Julgo que também seria bom que as pessoas interessadas pela cultura catalã que não costumam ler poesia se aproximassem deste género literário graças a esta antologia.

Há pontos de contacto entre a poesia da Catalunha e alguma poesia portuguesa?
Há mais do que à partida possa parecer. Na introdução refiro alguns deles e na antologia incluímos alguns poemas em que transparece o interesse de certos poetas catalães pela lírica portuguesa. Teixeira de Pascoaes, admirador de Joan Maragall, viajou a Barcelona em 1918 para dar algumas conferências sobre poesia portuguesa que acabariam por resultar no livro Os Poetas Lusíadas. Anos mais tarde, em pleno pós-guerra, Màrius Torres traduziu alguns dos seus poemas quando agonizava devido à tuberculose. Miguel Torga trocou correspondência com Josep Carner quando este último estava exilado no México. Por outro lado, a influência de Fernando Pessoa, bem como de Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner Andresen, também é importante para muitos poetas catalães, como por exemplo para Ponç Pons ou Joan Margarit. Há muitos paralelismos curiosos. Acho que Ary dos Santos e Vicent Andrés Estellés poderiam ter sido bons amigos, bem como ainda o podem ser Gemma Gorga e Filipa Leal, só para dar dois exemplos. As grandes traduções de poesia portuguesa não saíram apenas da Catalunha. Os Países Valencianos e as Ilhas Baleares têm uma longa tradição de editoras e tradutores interessados por esta lírica, como o já referido Ponç Pons, Gabriel de la S.T. Sampol, Josep Maria Llompart, Joan Navarro ou Jordi Sebastià.

Esta é uma edição bilingue. Só assim é que faz sentido? Porquê?
Para nós era uma exigência que fosse bilingue. Achamos muito importante dar a conhecer aos portugueses o percurso da língua e, ao mesmo tempo, as suas variantes. É preciso dizer que o catalão não se fala apenas na Catalunha. Também é falado nas Ilhas Baleares; na quase totalidade do País Valenciano; em zonas de Aragão próximas da fronteira com a Catalunha; em El Carxe, Múrcia; em Andorra; nos Pirenéus Orientais, no sul da França; e no Alguer, na Sardenha. Isto sem ter em conta os efeitos do exílio e da globalização, que espalhou e continua a espalhar ainda mais a língua por outras partes do mundo.

Ao nível da tradução quais os desafios que tiveram de enfrentar e de que forma os resolveram?
Uma das nossas máximas preocupações foi facilitar a experiência de leitura dos poemas em voz alta e oferecer a opção de musicá-los. Como é óbvio, há casos em que não é possível, mas em muitas ocasiões a musicalidade pode fazer com que os leitores se aproximem. Ao longo dos anos, realizámos inúmeras sessões de trabalho, tanto presencial como virtualmente, para limar as traduções. Para mim traduzir é sinónimo de partilhar, e ter a capacidade de partilhar parte do legado poético catalão enche-me de orgulho.

Estão o português e o catalão muito distantes enquanto línguas?
As duas são línguas românicas e, portanto, têm várias semelhanças. Para além disso, foneticamente, têm uma sonoridade parecida. Já confundi o Zeca Afonso com o Lluís Llach…

Quantos autores marcam presença nesta antologia?
Acabaram por ficar 87 autores. O número não tem nenhuma simbologia especial. No dia em que mandámos a última versão à editora, queríamos incluir mais dois nomes, mas em algum momento tínhamos de pôr um ponto final.

Foi um trabalho difícil?
Fácil não foi, para quê mentir. Decorreu durante cinco anos, com algumas intermitências, claro. Mas termos a aprovação da editora, a Assírio & Alvim, e sermos conscientes da importância do projeto foi preponderante para seguir em frente.

Quanto tempo levou até chegar ao que hoje é o Resistir ao Tempo?
É difícil de precisar. O projeto começou a materializar-se há cinco anos, mas também é verdade que, antes disso, já tínhamos traduzido alguns dos poemas para algumas publicações.

Há ainda muito por descobrir na poesia catalã?
A antologia Resistir ao Tempo, apesar de ter mais de seiscentas páginas, é apenas um aperitivo da poesia catalã. Mais do que aprofundar na obra dos poetas, coisa bastante difícil quando falamos de antologias de vários autores, pretendemos despertar a curiosidade dos leitores para que se sintam emocionados e atraídos pelos poetas, os poemas e a língua catalã.

Podemos ainda esperar mais uma antologia ou já está tudo dito?
Só mais uma? Esta antologia chegou para ficar, para resistir ao tempo, mas é óbvio que a fizemos para incentivar o interesse pela poesia e a literatura catalãs e potenciar novas traduções, quer sejam sob a forma de antologia ou não.

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