À volta das letras com Paulo Moura sobre “Cidades do Sol”

O mais recente livro de Paulo Moura, relata uma viagem ao Extremo Oriente que encerra, ela própria, uma demanda maior: descobrir com o que sonham os habitantes do futuro. Nesta entrevista o autor explica a viagem que fez pela Ásia em busca de utopias.

Sente-se mais um escritor de ficção ou um repórter que relata a realidade?
Sinto-me sempre um repórter a relatar a realidade. Vejo sempre a ficção, pelo menos a que eu escrevo, como mais uma forma de relatar e interpretar a realidade. Porque a realidade é o que me interessa.

Já passou por algumas das regiões mais problemáticas do mundo. Onde se sentiu mais impactado pelo que estava a assistir?
Impressiona-me o comportamento do ser humano em situações extremas. No meio de um conflito, uma guerra, uma revolução ou uma catástrofe, as pessoas revelam-se. Manifestam características desconhecidas, até, muitas vezes, para elas próprias. Características e boas e más. Grande egoísmo, calculista ou selvajaria, mas também enorme altruísmo, surpreendente generosidade. Foi incrível ver o choque e o desnorteamento dos soldados americanos na guerra do Iraque, a familiaridade com a violência dos homens e mulheres do Afeganistão, a abnegação e a capacidade de sacrifício dos rebeldes da guerra civil na Líbia, o ódio e o ressentimento nos olhos das crianças e jovens da Tchechénia.
Mas o mais surpreendente talvez seja a capacidade que os seres humanos têm de, apesar de tudo, levarem para a frente as vidas, de uma forma o mais normal possível, no meio da guerra e da destruição.

Sentiu medo quando fez cobertura de conflitos e guerras?
O medo é um instrumento muito útil quando se trabalha em zonas perigosas. Os excessivamente corajosos são um perigo para si próprios e para quem está perto deles.

O que significam para si os prémios com os quais já foi agraciado?
Os prémios são uma forma de encorajamento, num país onde a actividade de repórter não é reconhecida nem valorizada.

Apresenta-nos agora “Cidades do Sol”. O que o levou a escrever este livro?
É um livro de viagens, e eu sempre gostei de viajar. A Ásia interessa-me muito. Durante anos, viajei sobretudo para o Médio Oriente, porque foi nessa região que ocorreram muitos dos acontecimentos que marcaram o nosso tempo. Israel, o Irão, o Afeganistão, o Iraque, a Síria tornaram-se o centro do mundo pelas piores razões: os conflitos que mobilizaram toda a comunidade internacional. Mas agora sinto que esse “centro do mundo” se deslocou um pouco para oriente. Acho que a Ásia nos pode ensinar algo sobre um futuro que já está à vista. Consegui o financiamento da Bolsa de Exploração Nomad, que permitiu fazer a viagem em busca das utopias da classe média asiática, e escrever um livro sobre a aventura.

A obra está assente numa viagem ao Extremo Oriente, mas a sua finalidade vai mais além. Qual o seu objetivo com “Cidades do Sol”?
Eu queria conhecer a nova classe média asiática. Nas últimas décadas, centenas de milhões de pessoas, na China e outros países da Ásia, emergiram da pobreza extrema, migraram para as cidades, para gozar de um nível de vida decente, pela primeira vez, em muitas gerações. Em breve a classe média asiática será mais numerosa do que a ocidental.
A minha premissa era de que as pessoas, quando se libertam da miséria material, ganham a capacidade de sonhar. Não apenas com a melhoria da sua situação individual, mas sonhar também com uma sociedade mais justa, com um mundo que faça mais sentido. Era isso que eu procurava: as utopias que estão a nascer na Ásia.

O que é preciso para nos integrarmos numa grande metrópole asiática?
Desprendimento, disponibilidade, abertura de espírito, algum tempo. As grandes cidades da Ásia, mesmo as mais gigantescas e caóticas, continuam a ser muito hospitaleiras, muito humanas. É fácil conhecer pessoas, envolvermo-nos na vida da cidade, criar laços.

A um ocidental é essencial estar munido de alguma abertura para perceber o ADN destas cidades ou já não é assim?
Quanto maior for a abertura de espírito de um viajante, mais haverá para aprender e para se enriquecer.

Que cidades integram este seu périplo?
Procurei grandes cidades asiáticas que cresceram rapidamente nas últimas décadas, ou que se afiguraram relevantes para a minha pesquisa. Comecei por Bangalore, na Índia, por ser considerada a “Silicon Valley” do Oriente, devido á indústria do software. Segui para Manila, nas Filipinas, Jacarta, na Indonésia, Ho Chi Mihn City (Saigão), no Vietname, Seul, na Coreia do Sul, Hong Kong e Macau. Na China, visitei também Pequim, Xangai, Shenzen, Chongqin, e também zonas rurais em Anhui, ou a barragem das Three Gorges, descendo de barco o rio Yang Tse.

A verdade é que o Oriente está a mudar. Enquanto um observador privilegiado, de que forma vê essa mudança?
Muitos destes países estão a tornar-se potências económicas. As classes médias estão a crescer, tendo como palco as grandes cidades, desenvolvendo novos estilos de vida. E cresce também, da parte dos governos de alguns países, como a China ou a Coreia do Sul, uma irreprimível ambição de poder e influência no mundo. Na China, fala-se do Chinese Dream, para substituir o American Dream. Mas a Coreia também apregoa um alternativo Korean Dream.

Com o crescimento da classe média asiática o que vai mudar naquelas sociedades e, por consequência, no mundo?
São sociedades que amam incondicionalmente a tecnologia e que tendem a apreciar os valores sociais e familiares, mas também o autoritarismo, os consensos, uma perspectiva conservadora dos costumes.

Estão estas sociedade a ficar iguais às sociedades Ocidentais?
Por um lado, imitam o ocidente e o seu modo de vida. As elites asiáticas identificam-se mais com a cultura ocidental do que com os valores tradicionais do Oriente. Por outro lado, trazem um novo modo de viver a modernidade, menos individualista, menos preocupado com a privacidade ou os direitos de cidadania.

No século XXI o que tem o oriente para oferecer e ensinar ao resto mundo?
Essa é a grande incógnita. O governo chinês diz que o grande contributo é a ideia de harmonia. É um conceito herdado de Confúcio, que pretende acabar com a conflitualidade no mundo. Mas receio que isso apenas se consiga com um controlo apertado dos cidadãos, limitação das liberdades, submissão às autoridades, ainda que aliando tudo isto com a prosperidade económica. Talvez seja esse o contributo da Ásia, e talvez o Ocidente o aceite sem grande relutância.

Afirma que no Oriente não se sonha com utopias. Com que se sonha no Oriente?
Talvez nesta fase a classe média asiática sonhe essencialmente com bem-estar individual, emancipação e liberdade, num sentido económico, não político.

Porque deu a estas metrópoles o nome de “Cidades do sol”?
O título alude a um livro do Renascimento da autoria do italiano Tommaso Campanella, Cidades do Sol, que descreve uma cidade perfeita, a cidade da Utopia. A ideia de Utopia, na Europa, sempre esteve ligada (desde Marco Polo e Thomas Morus, até Fernão Mendes Pinto e Voltaire) ao nosso fascínio com a Ásia. E para nós, ocidentais, é naquele lado, oriental, que nasce o Sol.

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