À volta das letras com Lira Neto sobre “Arrancados da Terra”
Arrancados da terra, reconstitui a história e a trajetória dos judeus sefarditas, expulsos da Península Ibérica pela Inquisição, que se refugiaram na Holanda, ocuparam o Brasil e ajudaram a construir Nova Iorque.
Dos cárceres do Santo Ofício à esperança do Novo Mundo, o jornalista e biógrafo Lira Neto mapeia as vidas errantes dos pioneiros que formaram a primeira comunidade judaica das Américas, no Recife, e que ajudaram a construir Nova Iorque. Tudo isto e muito mais para descobrir em mais um à volta das letras.
O que leva um jornalista, historiador e escritor brasileiro a interessar-se pela história ibérica e europeia?
Interesso-me por história — e por boas histórias — de uma forma geral. Mas o interesse específico pelos fatos narrados em Arrancados da Terra veio-me da constatação da interdependência entre um período bastante significativo da história brasileira e a diáspora dos refugiados sefarditas. Foi desafiador e estimulante juntar as inúmeras peças de um quebra-cabeças que inclui as fogueiras da Inquisição portuguesa, a “era de ouro” dos Países Baixos, a ocupação do Nordeste brasileiro pelos holandeses e, por fim, a formação da cidade de Nova Iorque.
“Arrancados da terra” é o seu novo livro. Como surgiu a ideia de escrever sobre este tema?
A ideia inicial era escrever uma biografia de Maurício de Nassau, o governante do chamado “Brasil Holandês”, quando vastas porções da então colônia portuguesa foi ocupada pelos neerlandeses. Mas, durante a investigação, o tema dos judeus sefarditas que chegaram no Recife via Amsterdão pareceu-se mais fascinante e acabou por me tomar a atenção principal, mudando os rumos originais do trabalho.
De que forma desenvolveu a sua pesquisa?
Para ter acesso a fontes primárias, a investigação foi feita em arquivos de Portugal, Brasil, Holanda e Estados Unidos. Consultei processos inquisitoriais, registros de emigração, atas de reuniões, correspondências privadas e uma “cordilheira” de outros documentos do período. Para conferir colorido ao texto, a investigação centrou-se também em compêndios de época, velhos manuais de navegação, descrição de batalhas,
relatos de viajantes. Era preciso, além da macro-história, descer às minudências da micro-história, reproduzir os cenários do cotidiano e as contingências da vida privada na qual a narrativa se desenvolve.
Já morava em Portugal?
Iniciei a investigação ainda no Brasil. Quando o ambiente político em meu país começou a se deteriorar, pouco antes da ascensão de Bolsonaro, decidi atravessar o Atlântico e residir de vez em Portugal. Aqui tive a oportunidade de me dedicar ao projeto com mais tranquilidade e rigor, mergulhando nos arquivos da Inquisição preservados na Torre do Tombo.
Levou ela muito tempo?
O projeto surgiu há mais de uma década. Ao longo deste tempo, reuni material, li tudo o que dissesse respeito ao tema. Publiquei outros livros, preparando-me para enfrentar esta empreitada específica. Precisava descobrir os cheiros, sons, sabores, texturas e cores de cana um dos cenários descritos. É assim que escrevo, é assim meu método de investigação. Busco reunir minha prática de jornalista, sempre atento aos detalhes e à
artesania do texto, com os rigores da metodologia histórica, cuidadoso no trato com as fontes documentais.
Foi difícil encontrar as “personagens” do seu livro?
Gosto do trabalho em arquivos e acredito que não há boa narrativa sem bons “personagens”. Ao perscrutar papéis antigos, busco encontrar neles indivíduos de carne e osso, pessoas com nome e sobrenome, que a partir de suas singularidades consigam exemplificar, ilustrar e iluminar todo um contexto de época.
Como era ser judeu em Portugal entre os séculos XVI e XVIII?
O livro narra todas as vicissitudes a que estavam submetidos os judeus à época, alvo permanente de perseguições, baseadas em preconceitos, mitos e fantasmagorias. Os processos inquisitoriais são ricos em detalhes a respeito dos métodos de interrogatório, das práticas de tortura física e psicológica, do cotidiano dos presos nos cárceres. É necessário, claro, ler a documentação segundo a lição de Walter Benjamin, isto é, “escovando-os à contrapelo”, ou, como propõe o historiador Carlo Ginzburg, contra a intenção original com os quais foram produzidos.
Era a Inquisição, ou Tribunal do Santo Ofício, um autêntico Estado dentro do Estado?
Sim, em vários momentos, os interesses da Coroa e da Inquisição eram divergentes — e por vezes chegavam a se chocar. Os Inquisidores tinham autonomia em relação às determinações do Estado, pois o Santo Ofício não devia subordinação direta ao trono. No livro, narro por exemplo o momento em que o então inquisidor-geral, D. Francisco de Castro, contrariou D. João IV em relação à liberdade de prisioneiros judeus trazidos do Brasil para Lisboa, o que pôs em risco o disposto pelo Tratado de Haia, assinado em 1641 por Portugal e os Países Baixos.
O que era o «danado erro» da apostasia e o que acontecia a quem insistia nele?
A apostasia, a abjuração do sacramento recebido na pia batismal, era considerado o crime mais grave pelos inquisidores, a ser punido com a pena máxima: a entrega do réu à justiça secular, para ser queimado na fogueira. Nos primeiros capítulos do livro, reconstituo o caso de Gaspar Rodrigues, um modesto vendedor de pregos de Lisboa, que foi preso sob a acusação de renegar o batismo e praticar o judaísmo em segredo. Por dizer-se arrependido, foi condenado à pena tida como mais “branda”: o uso perpétuo do sambenito, o traje da infâmia. Exposto ao escárnio público, decidiu fugir de Portugal e buscou reiniciar a vida em Amsterdão, com novo nome, Joseph ben Israel. O filho de Gaspar, Menasseh ben Israel, tornou-se um erudito, um livre pensador, que por suas ideias heterodoxas chocou a ala mais ortodoxa da comunidade sefardita refugiada na Holanda.
Sabe-se qual o número de judeus sefarditas que abandonaram Portugal?
É praticamente impossível precisar um número. Foram milhares e mais milhares. A Inquisição não abria alternativas para um judeu a não ser a conversão compulsória ou a fuga.
A Holanda foi um dos destinos mais procurados. O que motivou essa escolha?
A Holanda vivia uma época áurea. Considera-se que tenha sido a primeira economia moderna do mundo. O acúmulo de capitais produziu uma geração extraordinária de artistas, por exemplo, entre os quais Rembrandt e Vermeer são os exemplos mais notórios. As grandes empresas de navegação, como a Companhia das Índias Ocidentais, misto de empreendimento comercial e máquina de guerra, dominavam o mercado transoceânico. Os judeus sefarditas, fugidos da Inquisição portuguesa e já protagonistas de grandes rotas mercantis espalhadas pelo planeta, viram a possibilidade de construir ali uma “Jerusalém do Norte”.
Como aconteceu a ida destes judeus portugueses para o Brasil?
Em 1630, a Companhia das Índias Ocidentais promoveu o ataque e a ocupação dos territórios brasileiros que eram os principais centros produtores de açúcar, mercadoria então valiosa no mercado europeu. Era uma forma, inclusive, de fragilizar a União Ibérica, uma vez que a Espanha era a grande inimiga das Províncias Unidas dos Países Baixos, que tinha a Holanda como principal Estado membro. O projeto colonial holandês no Brasil provocou a migração para Pernambuco de muitos judeus portugueses que viviam refugiados em Amsterdão, a desfrutar da relativa tolerância religiosa.
Embora existissem cristãos-novos no Brasil desde as caravelas de Cabral, a experiência holandesa possibilitou que eles pudessem exercer livremente o judaísmo.
Onde se fixaram eles e que importância tiveram na evolução desses locais?
O principal centro de convergência para esses judeus era Recife, capital da então capitania de Pernambuco. Lá, construíram a primeira sinagoga das Américas, a Zur Israel. O rabino Isaac Aboab da Fonseca, filho de refugiados portugueses em Amsterdão, foi designado como líder da comunidade recifense. Quando da guerra que resultou na reconquista portuguesa dos territórios ocupados pelos holandeses, Aboab da Fonseca escreveu textos em versos que descrevem, em tom de desencanto e desespero, o cerco final ao Recife. São considerados os primeiros registros de literatura hebraica
nas Américas.
E Nova Iorque, era ela a Terra Prometida destas pessoas?
Quando os portugueses retomaram Pernambuco, os judeus tiveram que partir. Do contrário, ficariam novamente sujeitos à jurisdição do Santo Ofício. Muitos retornaram à Holanda, outros espalharam-se por possessões holandesas no Atlântico, mais precisamente no Caribe. Outros, ainda, chegaram em Nova Amsterdão, o nome com que os holandeses se referiam à ilha de Manhattan, onde mantinham um pequeno entreposto comercial, que pouco mais tarde viria a ser a cidade de Nova Iorque, quando passasse para as mãos dos britânicos.
A sua narrativa é acompanhada de algumas imagens, belíssimas por sinal. O que o levou a tomar esta opção?
Durante cada uma de minhas investigações, costumo fazer também um inventário da iconografia do período. Como historiador, considero as imagens não como meras ilustrações, mas como fontes documentais relevantes. Elas não só ajudam o leitor a “entrar” na história, mas também servem para revelar e compreender usos e costumes, modos de vestir e viver, bem como possibilitam ter acesso à autoimagem compartilhada pelos indivíduos de determinada época.
Acha que há hoje o reacender da chama da intolerância?
Arrancados da Terra não tem o propósito de fazer mero antiquarismo, de revisitar uma história pitoresca que ficou restrita a algum lugar do passado. O livro, penso, reveste-se de incômoda atualidade. O grande tema da obra, em suas camadas mais profundas, é a luta permanente contra o preconceito, contra a intolerância e contra a construção dos discursos de ódio. Infelizmente, nada mais atual do que isso: a demonização do Outro, a construção de inimigos imaginários, a intransigência diante do diferente e das diferenças. Ao longo da história, esse Outro ganha diferentes contornos e matizes: o judeu, o cigano, o muçulmano, o migrante. Mas a intolerância é a mesma.
Será que somos incapazes de aprender com a história?
O desconhecimento da história, assim como os negacionismos e os revisionismos, abrem a porta para oportunistas e manipuladores de toda espécie. Foi assim que o repugnante Bolsonaro foi eleito no Brasil. É assim que líderes populistas de extrema direita ganham espaço por toda a Europa. Portugal, infelizmente, não está imune a isso.
