Entrevista: “Pôr o dedo na ferida faz parte da nossa identidade musical”, Cara de Espelho

Com espírito crítico e uma boa dose de humor, os Cara de Espelho regressam com “D de Denúncia”, uma canção que mergulha fundo no amiguismo, nepotismo e outras práticas bem conhecidas do quotidiano nacional.

Apesar de ter ficado de fora do disco de estreia, a música surge agora com nova força e atual pertinência, antecipando o segundo álbum da banda. Nesta entrevista, o grupo fala sobre o processo criativo, a importância da crítica social na música, o equilíbrio entre tradição e modernidade, e revela o que esperar do novo trabalho. Cara de Espelho não poupa ninguém — nem os Fulanos, nem os Beltranos, nem os Sicranos — e mostra que, em dia D, é tempo de pôr os pontos nos is.

Como nasceu “D de Denúncia”? O que vos motivou a escrever esta canção agora?
O “D de Denúncia” faz parte do primeiro grupo de canções que trabalhámos. Por não ter um arranjo fechado acabou por ficar de fora do nosso primeiro disco. É uma canção que tem como temas o nepotismo, o amiguismo, o clientelismo e a mais vulgar “cunha”. Apesar de poder ter sido uma das canções do disco anterior, não deixa de ser pertinente para este disco e para este momento em que estamos.

A letra é assinada por Pedro da Silva Martins. Como foi o processo de transformar esse texto em música com os arranjos da banda?
O processo tem início com a proposta do Pedro, que nos envia uma maqueta com a canção e a letra. A partir daí, enquanto banda, trabalhamos os arranjos em conjunto. Cada um traz ideias e caminhos, e como a criatividade de todos flui bastante, o processo acaba por ser semelhante a uma escultura: vamos retirando o excesso até revelar a forma final da obra.

A canção fala de personagens como Fulano A, Beltrano C, Sicrano X… Há alguma inspiração concreta nesses arquétipos?
Essas incógnitas ficam para quem as queira nomear. É muito provável que alguém, na vida, no emprego ou através de notícias consiga lembrar-se facilmente de dois ou três nomes que representem bem estes fulanos, beltranos e sicranos.

A crítica social em “D de Denúncia” é bastante direta. Sentem que a música ainda é uma ferramenta eficaz para provocar reflexão política e social?
Mantemos a esperança que sim, que a música ainda possa chamar a atenção para determinados assuntos. Gostamos de canções que façam reflectir, que tragam esse olhar crítico sobre a sociedade e sobre o mundo. Faz parte da nossa genética e identidade musical!

A repetição do verso “Porque hoje é o dia D / Vamos pôr os pontos nos is” cria um apelo à ação. Que tipo de reação esperam provocar no ouvinte?
O “D” dessa frase é o tal “D” de Denúncia. É alguém que vai denunciar 4 casos de compadrio (embora um deles, aparentemente, não se aparenta com ninguém). Em primeiro lugar a intenção é divertir quem ouça a canção e atente na letra, mas, claro, fica implícita uma chamada de atenção para estas situações.

Cara de Espelho é conhecida por cruzar tradição e contemporaneidade. Como equilibram esses dois mundos na vossa música?
Com muita naturalidade. Nas nossas bandas anteriores, de certo modo, já explorávamos esses dois campos que parecem antagónicos. Faz parte do que somos como músicos e pessoas. Temos o passado bem presente no futuro!

A fusão entre música e palavra parece ser central no vosso projeto. Como definem essa relação nas composições da banda?
Cara de Espelho nasceu já com essa génese. As palavras e as notas são pesadas e pensadas para que tudo resulte musical, natural, divertido, com contexto (e subtextos) e com a nossa assinatura. É esse o ponto central do nosso trabalho.

Ironia e sátira aparecem com frequência nas vossas letras. É uma escolha estética ou uma consequência natural da vossa visão do mundo?
Somos todos um pouco assim na vida. Temos esta coisa de olhar de forma criativa para as coisas. As nossas viagens de carrinha podiam competir com as melhores séries de humor (risos). Até criámos uma dupla de palhaços: Paralelo & Pípedo. Se Cara de Espelho não correr bem, já temos novo projeto pela frente!

“D de Denúncia” é um avanço do novo álbum. O que podemos esperar do resto do disco em termos de temáticas e sonoridade?
É um álbum que apresenta uma banda mais experiente, com mais estrada e concertos. O facto de nos conhecermos melhor musicalmente também ajuda. Algumas das canções foram rodadas ao vivo, o que lhes dá logo uma outra maturidade. Procurámos sonoridades e ideias temáticas que ainda não tínhamos explorado antes e estamos muito satisfeitos com o resultado.

Já podem revelar se há colaborações ou elementos novos que se destacam neste próximo trabalho?
Não podemos revelar!

O novo álbum vai manter essa veia crítica e interventiva, ou teremos também espaço para temas mais íntimos ou lúdicos?
Acho que conseguimos encontrar um bom equilíbrio entre a crítica, o lúdico e algo mais “íntimo”. Acho que todas essas “veias” se cruzam nas canções. Em Cara de Espelho tanto podemos ter uma crítica lúdica num dos temas, como uma intimidade interventiva noutro. Não sentimos estas canções com uma etiqueta exata, que são só isto ou só aquilo.

Em pouco tempo, foram reconhecidos como uma das bandas mais inovadoras do panorama português. Como vivem esse reconhecimento tão rápido?
Ainda sentimos que há muita gente que não conhece a nossa banda. O que é normal mas também nos dá um particular prazer, subir a um palco e ver a reação das pessoas, durante o concerto. Não somos deslumbrados com o meio musical. Já tivemos outras boas experiências antes de Cara de Espelho. O que nos diverte é fazer música que gostamos, com quem gostamos e partilhá-la com quem goste de nos ouvir. Isso tem sido bonito!

Participaram em vários festivais e ganharam prémios. Qual foi o momento mais marcante desde a estreia em 2024?
Felizmente, tivemos vários! Festivais como o Avante, Med, Bons Sons, FMM em Sines ou o Meo Kalorama (entre muitos outros), foram marcantes. As nomeações e a distinção de “Melhor Reinterpretacão da Música Tradicional” nos Prémios Play, foram também muito surpreendentes. Não esquecendo o facto de alguns jornais de referência terem nomeado ou escolhido o nosso disco como o melhor de 2024. Vencemos também o prémio de melhor banda na cerimónia da Rádio Futura, com direito a estatueta e tudo. Como somos muitos e só havia uma estatueta, antes que se partisse, oferecemos à nossa agência.

Como lidam com a responsabilidade de serem vistos como uma voz relevante na música portuguesa atual?
Vamos confessar uma coisa: não sentimos qualquer responsabilidade. (Risos) O que gostamos de fazer está à vista (e aos ouvidos) de toda a gente. É isto que fazemos e será o que vamos continuar a fazer, com toda a liberdade. Contem connosco!

O que vos inspira atualmente — musical ou socialmente — para continuar a criar?
Há muita música! Cada vez mais! Fazer uma lista de música que andamos todos a ouvir devia sair uma coisa bonita! Somos todos muito ecléticos de gostos. Socialmente, também. Há muita coisa a acontecer que nos desperta. A resposta de muita gente ao actual estado do que nos rodeia (em Portugal e no Mundo) são grandes fontes de inspiração!

Há planos para levar “D de Denúncia” e o próximo álbum para fora de Portugal?
Há sim! Ainda está por acontecer, mas vai acontecer! Esperemos em breve ter novidades a esse respeito!

Que papel gostariam que a banda Cara de Espelho tivesse na cena musical nos próximos anos?
Achamos que Cara de Espelho já cumpre um dos papéis para o qual surgiu: pôr os dedos em algumas feridas. Queremos continuar a ser chatos e incómodos para algumas pessoas e formas de estar na vida! Sim, somos uma banda com mau feitio! (Risos)

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