Entrevista: “Cada álbum é um capítulo de uma história que ainda está a ser escrita”, Letters From a Dead Man
Letters From a Dead Man é um projeto musical conceptual dos músicos Hugo Piquer Branco e Ricardo Filipe Bóia, que se distingue pela sua profundidade emocional, narrativa cuidada e uma ligação íntima entre as suas canções, como se cada uma fosse uma carta escrita de um diário pessoal. Com uma trajetória que começou de forma espontânea e tímida, ganhou vida através da persistência e da cumplicidade entre os seus dois membros, que encontraram na música um espaço para expressar medos, memórias e emoções profundas.
Por: Sandra Pinto
Nesta entrevista com Hugo Piquer Branco, exploramos a origem do projeto, o significado por detrás do nome enigmático da banda, e a evolução natural do seu processo criativo ao longo dos anos. Falamos também do percurso discográfico que construiu uma história rica, marcada por temas recorrentes e um constante crescimento artístico e pessoal. Através das suas palavras, conhecemos os desafios e as escolhas que moldaram o caminho até ao lançamento do álbum mais recente, My Only Fear Remains Unseen, um trabalho carregado de melancolia, esperança e autenticidade. Acompanhe-nos nesta conversa onde a música se transforma em narrativa, revelando o universo singular dos Letters From a Dead Man.
Como nasceu o projeto Letters From a Dead Man? Foi uma ideia que surgiu de forma espontânea entre vocês os dois ou já tinham um conceito definido desde o início?
Comecei a escrever canções por volta dos 13 ou 14 anos, apenas com uma guitarra acústica, sempre sozinho. Durante muito tempo tive receio de mostrar essas músicas, tanto a amigos e familiares como ao público em geral. Faltava-me confiança para as partilhar, mas, ainda assim, elas continuavam a surgir de forma natural. Compondo-as como uma espécie de desabafo, quase como uma forma de terapia, nunca me preocupei muito em divulgá-las: a minha maior realização estava no simples ato de as criar, como se fossem um diário pessoal. Foi apenas em 2012, já com vinte e poucos anos e após muita insistência de várias pessoas, que decidi dar início ao projeto e marcar os primeiros concertos. Nesse momento, convidei o Ricardo, um amigo de longa data e excelente guitarrista, para se juntar a mim.
O nome da banda — Letters From a Dead Man — é forte, enigmático e algo melancólico. Como surgiu e o que representa para vocês?
Desde muito novo que sempre me fascinou o conceito de obras que vão além da superfície, tanto na música como no cinema e na literatura. Filmes e séries com grandes conceitos por detrás sempre me inspiraram, e penso que essa influência se refletiu naturalmente nas músicas que compunha. Como ouvinte, sempre gostei de canções que contam uma história e que, sobretudo, criam uma ligação entre si, despertando a curiosidade para descobrir mais. Ao reunir dezenas de letras escritas entre os 13 e os 18 anos, percebi que existia nelas uma ligação evidente. Era como se fossem páginas de um diário íntimo. Daí nasceu a ideia de “Letters From a Dead Man”: um nome que traduz a sensação de alguém que, nos últimos dias de vida, revisita os problemas, desafios e emoções vividos ao longo do tempo. A escolha foi muito espontânea, quase natural. Na época, também ouvia bastante um projeto chamado Right Away! Great Captain, que, de certa forma, acabou por me inspirar nesta decisão.
A vossa discografia segue um percurso bastante conceptual, com capítulos, memórias e temas recorrentes. Desde o “Chapter I” até ao novo álbum, como é que sentem que a banda e o vosso processo criativo evoluíram?
Acredito que evoluímos de forma bastante natural. Com o passar dos anos, fomos compreendendo melhor o tipo de música que queríamos criar. Nos primeiros EPs ainda existia alguma incerteza sobre o nosso caminho, até porque cada elemento trazia influências próprias e distintas. No entanto, com o tempo, encontrámos o nosso espaço e a nossa identidade.
As canções continuam a nascer sempre da mesma forma: de uma guitarra acústica e de uma voz. A partir daí, tudo o resto se constrói. O que sempre identificou o projeto foi a mensagem por detrás das músicas, os refrães marcantes e as letras — tudo o mais foi-se moldando naturalmente. Hoje, sentimos que estamos mais maduros e conscientes, e que descobrimos aquilo que realmente nos faz felizes enquanto músicos.
“Somewhere I Was Lost”, o vosso primeiro EP, saiu em 2014. O que recordam dessa fase inicial do projeto? O que mudou desde então, musicalmente e pessoalmente?
Muita coisa mudou. Talvez as únicas constantes tenham sido a mensagem do projeto, a sua essência e, claro, a parceria entre mim e o Ricardo. O primeiro EP foi gravado em colaboração com a EP Produções, que na altura acreditou em mim e apostou no projeto — algo a que serei sempre grato, pois fazem parte da nossa história. No entanto, sendo a primeira experiência em estúdio e tendo eu pouco mais de 20 anos, senti que ainda não conseguia expressar musicalmente tudo o que pretendia. A banda estava ainda em formação: o Ricardo só entrou depois do EP já estar concluído, por isso, nessa altura, tudo era novo e em construção.
Os vossos lançamentos têm sempre um grande intervalo entre si. Essa distância temporal é intencional, como parte do processo, ou resulta das exigências da vida fora da música?
Exatamente. Gostaríamos muito de viver apenas deste projeto, mas infelizmente não é possível. Cada um de nós tem o seu emprego, totalmente fora da área musical, o que não nos permite dedicar-nos a tempo inteiro. No início ainda tentei viver apenas da música, mas rapidamente percebi que não seria viável por vários motivos. Hoje, olhando para trás, sinto que essa decisão acabou por ser a mais acertada. Encontrámos um equilíbrio e estamos confortáveis com ele. Não temos pressa: acreditamos que a arte não deve ser uma corrida de 100 metros. O importante é lançar novas obras quando sentimos que estamos realmente preparados e confiantes no que temos para oferecer.
Entre o primeiro e o segundo capítulo passaram cinco anos. O que motivou a continuação da história em 2019 com “The Fear of Letting You Go”?
Quando gravámos o primeiro EP, levámos para estúdio cerca de 15 músicas, mas nem todas puderam ser incluídas devido a limitações de tempo e orçamento. Muitas ficaram de fora, embora sempre soubéssemos que fariam parte do caminho mais tarde. Dessa forma, várias dessas composições acabaram por surgir em The Fear of Letting You Go, o segundo EP, lançado em 2019. Já tínhamos a certeza de que essa continuação seria apenas uma questão de tempo.
Em 2022 decidiram lançar “Acoustic Sessions”. O que vos levou a revisitar temas antigos nesse registo mais intimista? Que importância tem esse projeto na vossa trajetória?
“Acoustic Sessions” foi um passo muito importante. Surgiu no período pós-pandemia, quando tudo reabria lentamente. Nessa fase, eu e o Ricardo passámos mais tempo juntos do que nunca, dedicados ao projeto. Enquanto trabalhávamos já nas gravações do novo álbum, passávamos horas a tocar versões acústicas — tanto de músicas antigas como de composições novas — em casa, num ambiente intimista. Alguns desses momentos até chegaram a ser partilhados nas redes sociais e no YouTube.
Rapidamente percebemos que esse formato encaixava na perfeição no nosso repertório. Decidimos, então, gravar essas versões em estilo live recording e apresentá-las também ao vivo. A receção foi incrível: as pessoas sentiram essa proximidade, e nós próprios percebemos como os temas antigos se fundiam naturalmente com os novos. Foi, sem dúvida, um marco importante no nosso percurso e um passo que nos fez crescer muito como banda.
Cada lançamento vosso parece vir com uma nova camada emocional e narrativa. Sentes que o projeto é também um reflexo do vosso próprio crescimento pessoal?
Sem dúvida. É inevitável que o projeto reflita as nossas experiências de vida e o amadurecimento que vem com o tempo. Tentamos sempre manter-nos fieis ao conceito inicial, mas é natural que as músicas acabem por carregar também fragmentos do que vivemos ao longo dos anos. Esse crescimento pessoal acaba por se entrelaçar com o crescimento artístico, trazendo mais maturidade ao projeto. Acho que essa fusão é o que o mantém vivo e autêntico.
Para quem está a descobrir os Letters From a Dead Man agora, por onde sugerem começar a ouvir — pelo início da história, ou pelo novo disco?
Pessoalmente, sugerimos começar pelo trabalho mais recente, porque é aquele que melhor reflete o que somos hoje enquanto projeto e enquanto pessoas. Os primeiros EPs representam uma fase inicial, ainda em construção, enquanto o novo álbum mostra de forma mais fiel a nossa identidade atual. No entanto, para quem tiver disponibilidade e curiosidade, ouvir desde o início pode ser uma experiência mais enriquecedora, já que permite compreender a evolução da banda e perceber a ligação entre letras e canções ao longo da história.
O novo disco, “My Only Fear Remains Unseen”, mergulha em temas como a memória, a melancolia e o amor. Como surgiu este conceito? Já o tinham em mente há muito tempo ou foi nascendo naturalmente?
Este conceito já existia há bastante tempo. Embora a gravação do álbum só tenha começado em 2020/2021, muitas das músicas foram escritas entre 2010 e 2020. Claro que foram sendo revistas e aprimoradas, mas a essência estava lá desde o início, de forma muito natural.
Sempre o concebemos como uma viagem. Procurámos que fosse sentido como tal — quase como ler um livro ou assistir a um filme —, onde cada faixa acrescenta uma parte da história e reforça a ligação entre todas as outras.
Cada faixa funciona como uma carta — umas são confissões, outras despedidas, outras sussurros de esperança. Como foi o processo de construção desta narrativa? As canções foram pensadas em sequência ou cada uma surgiu isoladamente e depois encaixada no todo?
As canções surgiram de forma isolada. Contudo, os temas que abordamos — relações, medos, despedidas — comunicam naturalmente entre si e acabam por se ligar de forma orgânica. Essa proximidade temática tornou simples criar a conexão narrativa que atravessa o álbum.
Há um forte tom emocional e intimista em todo o álbum. Foi difícil equilibrar a carga pessoal com a composição musical?
Sim, foi um desafio. Tal como referi antes, à medida que as nossas experiências de vida se acumulam, o projeto amadurece com elas. Não seria verdadeiro dizer que as músicas não carregam elementos pessoais, porque carregam. É difícil separar completamente a vida da arte.
No entanto, acreditamos que isso também confere autenticidade ao trabalho. Essa fusão entre o íntimo e a música acaba por tornar o projeto mais verdadeiro e próximo de quem o ouve.
Os singles “Lay Down, My Love” e “Many Days, Many Ways” servem como entrada neste universo. Por que escolheram essas duas faixas como apresentação do disco? Representam diferentes lados da história?
A escolha foi bastante natural. Sentimos necessidade de lançar um single alguns meses antes do lançamento do álbum, depois de algum tempo de pausa, para mostrar que estávamos de volta. Many Days, Many Ways pareceu-nos a escolha certa: um tema intimista, direto, que traduz bem a essência de Letters From a Dead Man. Já Lay Down, My Love foi desde o início pensado como tema de abertura do disco, pelo que fazia todo o sentido apresentá-lo em simultâneo com o álbum.
O videoclipe de “Many Days, Many Ways” já está disponível. Que ideias ou sentimentos quiseram transmitir visualmente com este tema? Como foi o processo de criação do vídeo?
A ideia principal surgiu do Ricardo, que tem sempre uma grande criatividade para videoclipes. O conceito, resumidamente, é o de algo que parece estar a acontecer, mas que, na verdade, pode não estar — quase como um sonho. Ainda assim, preferimos deixar espaço para que cada pessoa interprete o vídeo à sua maneira, de acordo com aquilo com que mais se identifica.
Este novo álbum parece mais maduro, mais depurado e emocionalmente profundo do que os anteriores. O que mais vos orgulha neste trabalho?
A verdade é que nos orgulhamos de cada detalhe deste álbum. Foi, sem dúvida, o trabalho que mais prazer nos deu criar e gravar. Ao contrário dos primeiros EPs, todo o processo de gravação e produção foi feito por nós, de forma muito pessoal.
Na fase final, contamos com o apoio de duas pessoas na mistura e masterização, que compreenderam perfeitamente o que pretendíamos e tiveram a paciência necessária para respeitar o nosso ritmo. O resultado é, para nós, o trabalho mais representativo de Letters From a Dead Man — sentimos que demos o nosso melhor em cada passo.
Há também uma forte sensação de fim, como se estivéssemos a assistir aos últimos pensamentos de alguém. Isso foi uma escolha intencional desde o início? Há algum simbolismo por trás dessa despedida emocional?
Isso vai ficar mais claro nos próximos capítulos. No último tema do álbum, Goodnight, My Dear (Part II), existe de facto uma despedida intensa, mas não definitiva. Podemos garantir que haverá continuidade.
Apesar do tom melancólico, há momentos de esperança no disco. Acham que, no fundo, esta viagem é sobre aceitar — ou lutar contra — o inevitável?
Mais do que lutar, acreditamos que é sobre aceitar. Aceitar todas as experiências, aprender com elas e compreender que a vida é exatamente isto: inevitável, imprevisível, mas sempre valiosa. Essa é talvez a principal mensagem do álbum — e, quem sabe, do próprio projeto.
O álbum já está disponível em todas as plataformas digitais. Como tem sido a reação do público até agora? Sentem que este trabalho vos está a levar a novos ouvintes?
A receção tem sido a que esperávamos. Sabíamos que a nossa ausência tinha criado algum distanciamento, mas também acreditamos que este regresso será gradual. Passo a passo, esperamos chegar a mais pessoas e conquistar novos ouvintes agora que o álbum está finalmente
disponível.
Este disco fecha um ciclo ou abre portas para uma nova fase dos Letters From a Dead Man? Já pensam no próximo capítulo?
O projeto continuará sempre. Independentemente da forma que possa assumir no futuro, os Letters From a Dead Man existirão enquanto parte essencial das nossas vidas. Eu e o Ricardo fazemos música não apenas por gosto, mas porque é algo intrínseco a nós, uma necessidade constante de criar e de nos expressarmos através dela. Na verdade, já existem várias ideias e temas em formato demo, prontos para serem desenvolvidos. Por isso, sim, o próximo capítulo já começa a ganhar forma.