À conversa com mema
mema. produtora, compositora, guitarrista e cantora portuguesa, lançou em todas as plataformas o novo single “Perdi o Norte”. Motivo perfeito para trocarmos dois dedos de conversa.
Por: Sandra Pinto
O que significa o nome deste teu projecto a solo?
O nome mema. surgiu em Berlim, quando eu quis romper com o meu anterior nome artístico Fia. Estava ligado a coisas muito pessoais para mim e a um estilo musical que já não me representa. Na verdade, mema. é a junção das primeiras sílabas dos meus apelidos, que marcam uma afirmação da minha identidade, eu mesma. E é isso que eu quero que a minha música reflicta. Claro que descobri entretanto que esta palavra existe noutros idiomas e com os significados mais cómicos… digamos, de sempre. Por exemplo, em espanhol significa “tonta, néscia, boba”. Quando disse a uma amiga espanhola que o meu nome artístico é mema. ela fartou-se de rir.
Desde quando te interessas por música?
Comecei a interessar-me por música desde muito cedo. Que tenha memória, desde os 4 ou 5 anos. A minha família materna sempre foi muito musical. A maioria canta, por isso, as reuniões de família eram sempre pautadas por canções, normalmente espirituais negros, gospel e blues. Por aí. Outros frequentaram o Conservatório em instrumentos diferentes (flauta e piano). Lá em casa também sempre houve música a tocar. Os meus pais têm uma coleção de vinis, desde Abba e Aretha Franklin a Joan Baez, Simon and Garfunkel, Pink Floyd, Queen e muitos outros, que eu comecei a vasculhar mais a fundo no início da adolescência.
Conta-nos um pouco do teu trajecto.
Comecei a escrever proto-canções com 12 anos. Chamo-lhes assim, porque ainda não eram propriamente canções, mas para lá caminhavam. Aos 15 comecei a levá-las mais a sério. Mas foi só em 2011 que editei os primeiros temas, colaborações com amigos rappers de Aveiro – o Zim que entretanto fundou a Point of View e realiza videoclipes para muitos dos grandes do panorama nacional, e o Mic que tem os estúdios Sine Factory e foi quem misturou os meus singles e o EP que está para vir. O Michael e o Zim são dois dos grandes culpados pelo meu percurso na música. Ahaha! Desde cedo me incentivaram a gravar e a compor e a colaborar. Isso fez toda a diferença na minha vida. Nesse ano também lancei um EP em Inglês sob outro nome artístico, tinha-o escrito na Áustria, em Erasmus, e cheguei a tocar algumas dessas canções ao vivo com outros colegas da Croácia e EUA num pequeno festival em Udine, Itália. Depois disso, em 2013 mudei-me para Lisboa para me focar só na música e lancei em 2014 o single “Contornos”. Entretanto, em 2015, apercebi-me de que algo não estava a funcionar para mim e quis quebrar laços com a música. Fui para Berlim. Diga-se de passagem que o meu jejum de música não durou muito tempo. Juntei-me a um colectivo de produtores, Strength in Numbers, adoptei o nome mema. e atirei-me à produção mais a fundo. A vida ainda me levou a Dublin e foi só aí que desbloqueei por completo e quis voltar a partilhar algo com o mundo. Todas estas experiências deram-me muito para dizer. Em Outubro do ano passado lancei o single “O Devedor” e agora o “Perdi o Norte”.
De que forma desenvolves o teu processo criativo?
É muito all over the place, para ser sincera, e depende do que for para fazer. Para as minhas músicas, na maioria das vezes começo pelo instrumental. Sento-me ao piano ou com a guitarra na mão, ou até só com a DAW aberta e um qualquer instrumento MIDI para começar, experimento algumas progressões de acordes ou melodias e gravo essa ideia. A partir daí desenvolvo o resto, incluindo a letra, que é quase sempre a última coisa em que trabalho. Mas acontece-me muito, ultimamente, começar pelo beat, pelo ritmo, e em paralelo com tudo o resto fazer a letra também. É-me mais natural ir trabalhando a letra ao mesmo tempo que trabalho a melodia vocal. Tenho fases. Por vezes, vêm-me letras à cabeça e o processo é completamente o inverso. Não tenho uma fórmula. O importante é ter a disciplina de fazer todos os dias
Onde te inspiraste para “Perder o Norte”?
Musicalmente inspirei-me principalmente na sonoridade tradicional do Minho. Andei uns tempos pelo YouTube a ver e absorver tudo quanto era actuações de ranchos folclóricos e grupos de pauliteiros, peguei em algumas melodias tradicionais e desconstruí-as para criar o motivo do refrão. Sou de Aveiro, que é centro-norte, é certo, mas sempre me senti como nortenha. Principalmente quando me mudei para Lisboa, se não és de lá, és do norte. ahah! Conceptualmente, inspirei-me mesmo no que estava a sentir, sentia-me desnorteada, sem rumo. E foi mesmo por essa expressão que peguei para desenvolver o tema da canção.
O facto de ter sido escrito em Dublin teve alguma influência no resultado final?
Acho que sim, mais pelo mood. Ao mesmo tempo vejo na música tradicional do Minho algumas semelhanças com a música Irlandesa, provavelmente pelas influências célticas em cada região, por isso, é possível que Dublin me tenha empurrado para esse caminho.
Por falar em Dublin, como foi essa experiência? Como foste parar à Irlanda?
A minha vida pessoal levou-me a Dublin. Foi uma experiência agridoce. Teve os seus momentos muito positivos, aprendi muito sobre mim lá, sobre os meus limites, sobre os meus piores defeitos, sobre a minha resiliência. No entanto, tive uma fase muito depressiva. Cheguei a um ponto em que não queria mesmo sair da cama e só conseguia chorar. Mas tirando isso, tive a oportunidade de tocar com alguns projectos locais, participar em jam sessions e open mic nights, entre outras coisas. Confesso que tenho algumas saudades em ir beber umas pints de Guinness ao pub local ao fim do dia. Ahah!
Quanto tempo lá estiveste?
Dois anos e meio.
Também passaste por Berlim onde fizeste parte do colectivo de produtores de electrónica “Strength in Numbers”. Como foi essa aventura?
Berlim foi uma experiência curta, mas muito intensa e muito rica. Para me manter ocupada e conhecer pessoas, procurei por meetups na área e encontrei este colectivo. Reuníamos na Noize Fabrik, um espaço de co-work para músicos e criativos a 20min de Kreuzberg. Um engenheiro químico Canadense, deixou tudo para trás para fazer música, veio para Berlim e começou o grupo, inspirado por um documentário da Ableton chamado Team Supreme: Strength In Numbers, como forma de nos ajudarmos e crescermos juntos na nossa arte. Havia desafios semanais em que tínhamos de fazer beats de 1min, seguindo algumas regras. Por exemplo, tens 2h para o fazeres e só podes usar este sample específico, nada de instrumentos. Foi uma escola incrível para mim. Tínhamos produtores de todo o lado, Alemanha, Suécia, Rússia, Chile, EUA, Austrália, etc, de estilos muito diferentes. Desde pop / soul até techno, trance, electrónica experimental, lo-fi hip hop, entre outros. Fiz amigos para a vida. Aliás, o Flechtheim que fez o remix do meu tema O Devedor, foi uma das pessoas que conheci neste colectivo.
Voltemos a “Perder o Norte”, há no tema uma fusão de estilos e de instrumentos. Explica-nos um pouco esse processo.
Sempre ouvi música de estilos muito diferentes e isso sente-se na minha estética. Quase inconscientemente a influência electrónica de Berlim entranhou-se em mim e foi com naturalidade que produzi este tema dentro dessa linha. Já fazia uma espécie de pop electrónica antes de Berlim, mas nada deste género. Eu quis mesmo honrar a tradição portuguesa, inicialmente queria usar instrumentos apenas das beiras, pensei na viola beiroa, mas foi-me difícil encontrar quem a tocasse. Por isso, acabei por optar pela guitarra portuguesa. Alguém meu próximo conhecia o Hugo Claro dos Atma e Udjat. Ouvi as coisas que ele faz e a forma diferente, mais arabesca, como toca a guitarra portuguesa e achei que funcionaria mesmo bem para o que eu estava a tentar fazer. Puseram-nos em contacto e gravamos quer o “Perdi o Norte”, quer o anterior “O Devedor”. Deu um toque completamente diferente à música. A orquestração ou parte mais sinfónica, bem como a percussão adicional no último refrão tem muito a ver com a minha formação clássica, mas também pela influência de artistas que ouço, nomeadamente Azam Ali, Epica, entre outros.
Quando te começaste a interessar pelas sonoridades mais tradicionais?
Surgiu de forma mais intensa quando estive fora. Um pouco o que chamo de “síndrome do emigrante”. Estás fora, começas a valorizar mais o que tens cá dentro, as tuas raízes, a tua história. Pões tudo em perspectiva quando estás longe uma temporada e, por isso, comecei a investigar mais e a ouvir mais. Mas já tinha esta queda para o tradicional antes. Alguns dos projectos e artistas que mais acarinho em Portugal são Madredeus, António Variações e Dazkarieh, todos eles com esse elo de ligação do tradicional aliado a algo inovador. Antes de ter estado fora, talvez tivesse mais curiosidade pelos instrumentos em si, do que pela canção tradicional propriamente. Mas foi um amor que cresceu. Aprende-se muito sobre nós próprios e os nossos antepassados com a canção tradicional. O projecto A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria é um fantástico recurso para isso. Incrível projecto mesmo.
Quais as tuas maiores inspirações para criar?
A luta interior, o amor, a paixão, a melancolia, a escuridão. A psique humana é algo que me intriga, a forma como processamos emoções, como nos relacionamos uns com os outros e o meio à nossa volta, como lidamos com todos estes processos interiores, espirituais até, são curiosos e inspiradores. O dia-a-dia, por mais aborrecido ou alegre que possa ser, é inspirador para mim. Até essa dicotomia é inspiradora.
O novo tema surge depois de “O Devedor”. Há um fio condutor entre os dois temas?
Ambos fazem parte do meu EP “Cidade de Sal”, que será lançado mais tarde este ano. Ambos expressam de certa forma uma vontade de regressar e voltar à raiz. Na verdade, vieram em sentido inverso. O Perdi o Norte é a afirmação da desgraça (ahah!) e O Devedor a atitude de mudança.
Quais os músicos, portugueses e estrangeiros, com quem gostarias de trabalhar? Por quê?
Não tenho um predileto, mas tenho alguns em mente. Pedro Mafama, gosto da escrita dele, acho que os nossos estilos colariam bem. Branko, é inovador, tem um conhecimento gigante de música do mundo e acho que uma colaboração com ele seria incrível (pode ser que esteja algo a caminho já). Surma, porque tenho um respeito enorme por ela e acho-a uma produtora e pessoa fantástica. Noutros géneros completamente diferentes, tenho curiosidade em colaborar com Scúru Fitchadu. Acho que a crueza da sonoridade deles com a minha mais melódica seria interessante.
Fora de Portugal tenho sempre em mente Baiuca – produtor da Galiza que tem levado a música tradicional galega às pistas electrónicas. Rosalìa, porque amo a forma como ela faz música, porque além de cantar maravilhosamente é também produtora e songwriter e, porque a postura que tem na indústria é exemplar. Björk, porque ninguém faz o que ela faz e é uma lenda. Há que sonhar alto.
Para quando o lançamento do teu EP?
No final de 2020, possivelmente início de Outubro.
Perguntas rápidas
Rádio ou TV: Rádio
Vinil ou CD: CD
Música electrónia ou sonoridades tradicionais: Música electrónica
Cinema ou literatura: Literatura
Doces ou salgados: Salgados
Festival ou concerto em sala fechada: Concerto em sala fechada
Verão ou Inverno: Verão
Lisboa ou Aveiro: Não consigo responder. Amo Aveiro e amo Lisboa, são ambas casa. Aveiro é o berço, difícil bater isso, mas tenho história em Lisboa também.
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