Com o projeto Cravo, Simão Reis transforma o quotidiano em música e imagem, criando um universo íntimo e visualmente envolvente. Em “De Lado”, o lançamento mais recente do projeto, a inspiração surge da vida a dois e da necessidade de aceitar imperfeições e desacelerar diante do stress diário. Entre solos de guitarra, baladas delicadas e animações que capturam movimentos contínuos, a faixa reflete uma abordagem artística que combina música, ilustração e vídeo, sem colocar o artista no centro, mas sim a experiência sensorial e emocional do público.
Por Sandra Pinto
Nesta entrevista, Simão aka Cravo fala sobre o processo criativo, a evolução sonora do projeto e o compromisso de lançar uma nova canção por mês, mantendo sempre o seu gesto artístico autêntico e próximo da vida real.
O que te inspirou a escrever “De Lado” e como surgiu a ideia de transformar o quotidiano num tema musical?
De Lado é, como os outros cravos, uma forma de eu escrever sobre o que sei – o dia-a-dia. Neste caso, o que me levou a escrever esta canção foi uma certa vontade de dizer à minha mulher que é preciso ter calma para não se perder a cabeça com tudo e com nada. Eu próprio sou uma pessoa stressada e este tema acaba por ser para mim também. Fazemos de tudo para seguir planos e objetivos, mas é preciso ter a sabedoria de adaptar consoante o caminho que nos aparece.
A letra fala sobre aceitar a imperfeição e viver com outra pessoa. Quais foram os elementos mais pessoais que quiseste transmitir nesta canção?
Quis, acima de tudo, mostrar à Ju que não vale a pena andarmos aqui com discussões fúteis sobre o dono da “razão” ou sobre “porque é que algo não saiu como planeado” e que a atenção deve sempre no bem estar dos dois. Às vezes mais vale parar um bocado, fumar um cigarro e esperar.
Como surgiu a expressão “de lado” no contexto da música, tanto liricamente como visualmente?
Não sei se é uma coisa mais do norte mas é normal dizer-se que alguém vai “de lado” em contraposição com o “ir a direito” – cá em casa, sempre que queremos ir a direito, sai ao lado. Acho que a decisão de começar a aceitar que às vezes mais vale o “vamos indo, vamos vendo” foi das melhores que podíamos ter tomado. Não como um casal de bêbados que andam de lado e não sabem a quantas andam mas como um casal que se vai adaptando à vida como ela insiste em ser.
Musicalmente, a faixa tem influências de Connan Mockasin e GNR. Como conjugaste estas referências para criar o som único de “De Lado”?
Eu gosto muito do sentimento de proximidade que o Connan Mockasin consegue passar e como esta canção é um recado para minha mulher, senti que tinha que a tornar o mais íntima possível. Em termos líricos, depois de a ouvir muitas vezes na edição, como sei a perceber que ela tinha uma certa cadência de alguma canção dos GNR – até agora por identificar.
Adoro canções dinâmicas, mesmo que às vezes não as faça. Foi o caso desta, eu não mexi muito nas dinâmicas da canção mas quis passar a ideia de que há um início, um meio e um fim – os solos de guitarra simbolizam uma espécie de beijinho que dou antes e depois de dizer à minha mulher para ter calma.
Que as coisas boas demoram. Que a paciência não é só uma virtude, pode ser algo mais. Que há uma certa continuidade que se deve manter. Eu faço tudo sozinho neste projeto, o mais difícil é acordar todos os dias com vontade de ser patrão e empregado ao mesmo tempo quando pouco ou nenhuma gente tem interesse no que faço. Mesmo assim, faço. O loop, seja nesta animação, seja nas anteriores, simboliza isso – eu preciso de continuar, de fazer isto e de manter uma certa constância, por muito que os frutos sejam todos dentro de mim. Os artistas nunca gostam de se intitular de artistas mas se o sou, o que me resta fazer é compor, gravar, editar, desenhar, etc. Em loop, até que me ouçam ou não.
O projeto cravo combina música, animação e ilustração. Como equilibras estas três vertentes para criar um gesto artístico completo?
Ajuda ter sempre algumas canções acabadas ou muito próximo disso. Eu comecei a lançar cravos em julho e nessa altura tinha perto de 50 canções para lançar. Entretanto acabei outras quantas e ando sempre a fazer rotoscopias e animações de temas ou objetos que gosto. Como lanço um cravo por mês, tenho que andar sempre a criar novos vídeos e animações mas tento nunca passar uma semana sem compor ou gravar alguma coisa. Mais uma vez, reina a ideia do “vamos indo, vamos vendo”.
Cravo é um projeto independente que não coloca o artista no centro. Como surgiu esta abordagem e que impacto tem na forma como crias música e imagem?
Há uma necessidade de afirmação da estupidez e eu não me alinho com isso. Há também uma necessidade de valorização e confirmação externa, algo que eu também acho deplorável. Acho que o pior de tudo no mundo da música atualmente é a ideia de que hoje SÓ conta a imagem e o status e eu quis fugir disso. Eu lembro-me de 10 ou 20 nomes de artistas que amo e não conheço a cara e isso para mim é que é o poder da música – a música em si. Para que querem as pessoas saber quem sou quando eu digo quem sou nas minhas canções?Lanças regularmente um tema por mês. Qual é o desafio e a motivação por trás deste compromisso criativo?
A motivação é acabar canções, acabar e expor trabalho. É muito fácil uma pessoa desistir de alguma coisa. É só deixar de fazer. Todos os dias são uma luta nova, um problema novo, um software que deixa de funcionar do nada, etc. Há muita escolha, há muita ideia sempre a chegar, é normal sentir-me um bocado overwhelmed com a infinita piscina de hipóteses. Quero tudo perfeito mas sei que isso é impossível e normalmente surge uma batalha daí. Depois ainda há também medos e vergonhas infundadas associadas à parte da produção e edição, campo que eu também não tenho formação e uso só o meu gosto… Há mesmo muitas razões para não se fazer alguma coisa e outras quantas para se desistir. Eu gosto de pensar que estou a ser verdadeiro e cru em manter-me a fazer a minha cena. Se não fosse o compromisso, talvez teria parado depois de lançar o primeiro cravo e a frustração teria ganho a batalha.Apesar dos lançamentos regulares, estás à procura de concertos e visibilidade nos media. Como tens trabalhado para expandir a presença do projeto?
Para além de lançar música, não há muito a fazer não é? O que eu posso controlar são os lançamentos das músicas e dos vídeos. O resto depende sempre do público, dos media, das salas e bares de música ao vivo… A verdade é que eu quero ter uma hora forte de canções para poder tocar ao vivo e ando a ensaiar isso sempre que tenho algum tempo. O projeto existe, sai uma vez por mês no Youtube e nos streaming services todos. Sempre que posso, vou às redes relembrar as pessoas que o projeto existe ou de que vai sair alguma coisa nova. É esperar que as pessoas gostem, acho eu. Nenhuma das formas de expansão de presença habituais ou mais ortodoxas me interessam. Não consumo nada nas redes sociais, portanto nem sequer sei como posso ser original a comunicar com as pessoas. Não há muito que se possa fazer, resta-me lançar música e ser honesto.
Como descreves a evolução sonora de cravo desde os primeiros temas até “De Lado”?
Eu sou altamente insatisfeito e isso passa no meu discurso mas também tenho noção (derivada de anos de experiência) que as coisas até me estão a correr bem. Em menos de meio ano consegui passar em várias rádios locais e nacionais e, talvez por ser de outra geração, isso foi o ponto alto de cravo. Em termos sonoros a evolução é igualmente positiva. Começo a estar mais confortável com a edição. Acho que esta foi a melhor canção até agora e tenho a certeza que a próxima ainda vai estar melhor.
Há alguma história ou momento curioso que possas partilhar sobre a criação de “De Lado”?
Quando escrevi a canção, a minha mulher ainda fumava. A canção convida-a a ter calma, encostar-se para trás e fumar um cigarro. Quando lhe mostrei o produto final, ela já não fumava há uns meses e pensei que ela fosse referir isso. Disse-me só que a música era linda e que lhe tinha caído uma lágrima. Até as musas estão diferentes.
Para quem ainda não conhece cravo, como resumirias a experiência de ouvir a música e ver as animações do projeto?
Não sou fã de Radiohead mas lembro-me da primeira vez que ouvi a “Just” deles. Ouvi e vi pela primeira vez aquele videoclip e aquela malha. Ainda era novo e lembro-me de ter ficado completamente estupefacto com o equilíbrio perfeito entre a imagem e mensagem – aquilo fazia tudo muito sentido! Desde então que sempre procurei fazer isso com as bandas que tenho, com a minha música. Em cravo, a ideia é fazer o bolo todo e fazer de tudo que ele saiba bem, faça sentido e para que as pessoas queiram voltar para mais uma fatia- o pasteleiro não interessa. Quero muito cantar e escrever canções que façam sentido emocional para quem ouve e vê. Acho que as ilustrações e os vídeos ajudam nisso, a criar essa ligação emocional.
Youtube de Cravo aqui

