À conversa com Nuno Calado
Há muitos anos a expressão homem da rádio tinha um significado especial sendo aplicada àqueles que faziam desta forma de comunicação uma arte. Caída em desuso, é aqui recuperada para, com toda a justiça, a aplicarmos a Nuno Calado. Realizador de rádio, DJ, e acérrimo defensor dos direitos dos animais, Nuno Calado é uma referência quando se fala de rádio e de divulgação musical no nosso país.
Um auto-retrato em cinco palavras.
É o que se chama começar com o pé na porta… Sou um divulgador de música com opinião em outras áreas. Foram mais de cinco palavras e sei que não responde, mas não se pode responder a tudo…
Como surgiu a rádio da tua vida? Amor à primeira locução ou paixão antiga?
Foi amor à primeira vista. Aliás o primeiro amor foi mesmo a música e a vontade de a partilhar com os outros. Comecei numa rádio pirata, onde um vizinho meu já dava alguns passos. Era uma rádio com vários sócios, um deles era meu professor na escola, o outro era o António Manuel Ribeiro, dos UHF. Antes de ter experimentado nunca sequer tinha pensado em fazer rádio.
Fizeste rádio pirata…sentias aquele friozinho no estômago de quem está a pisar o risco?
Sentia o friozinho no estômago da adrenalina e dos nervos (naquela altura sentia sempre isso antes de abrir o micro). A primeira vez que falei, li um texto relativamente curto, mas suei tanto que o suor pingava na mesa. Nunca senti que fosse um risco fazer rádio pirata. É um risco muito maior fazer outras coisas, como por exemplo hoje em dia passar música com um computador e esperar que a fiscalização não te leve preso, apesar de estares legal.
Ganhaste juízo e foste para a Antena 1… como foi a adaptação?
A ida para a Antena 1 não foi imediata. Depois da rádio pirata estive uns meses numa rádio local e só depois fui para a Antena 1. A adaptação foi boa, acho eu, aprendi mais em seis meses do que em quatro anos. Estava finalmente na primeira divisão, embora nas rádios pirata e local tenha trabalhado com pessoas que hoje são referências nacionais, como é o caso da Ana Lourenço da SIC Noticias, de quem guardo as melhores memórias e com quem ainda vou comunicando de tempos a tempos. Tenho o maior orgulho no trabalho dela e espero que o contrário também seja verdade. Voltando à questão da adaptação, digamos que foi uma grande mudança, como sair da Lourinhã e ir para Nova Iorque. Estou muito grato pela possibilidade que me deram de poder na altura trabalhar com pessoas como o Nuno Galopim, o Jorge Alexandre Lopes, o Luís Ramos, o Ricardo Saló ou a Sílvia Alves. Comecei a trabalhar na Antena 1 em Abril de 1991 e, pouco depois, começava o primeiro concurso de música moderna da Câmara Municipal de Lisboa, também conhecido como o concurso do Johnny Guitar. Foi aí que conheci o Henrique Amaro, o Zé Pedro, o Kalu e mais um “monte” de jornalistas e de músicos. Nessa altura, foi mesmo o entrar num admirável mundo novo.
Estás há mais de uma década na Antena 3, um projecto que ajudaste a nascer e a crescer. Como tem sido viver essa aventura?
Na verdade, estou na Antena 3 antes de ela se chamar Antena 3. Com a venda da Rádio Comercial, sobraram umas frequências e o Jaime Fernandes, que tinha a vontade de criar uma rádio jovem na RDP, juntou o pessoal mais novo que estava na Antena 1 e começou a trabalhar num estação chamada RDP FM. Com malta que vinha também da Comercial, como o Luís Filipe Barros, o Rui Santos ou o Pedro Costa e alguns reforços vindos de rádios locais, como o Miguel Simões e o Joaquim Pantaleão. Estivemos nesse regime praticamente um ano antes de tudo mudar e a RDP FM ir para o ar como Antena 3.
Ter um programa de autor no ar há 10 anos é obra…conta lá qual é o segredo?
Já lá vão mais de 10 anos… Tenho sempre problemas com as datas, mas sei que em 1998 já o Indiegente era um programa diário. O segredo é difícil de dizer, se é que existe algum. Acho que se tem sido um programa coerente ao longo dos anos. Óbvio que tem tido momentos mais ligados a uma ou a outra corrente estética, mais isso faz parte da vida. A ideia é partilhar a música de que gosto e tentar fazer sempre um trabalho honesto, sem nunca querer ser um pseudo-intelectual. Há sempre uma lógica de emoção, muito mais do que de razão.
Porquê Indiegente? O que deu origem ao nome?
Foi uma feliz inspiração, acho eu. Conseguir uma palavra que graficamente tinha o duplo sentido que procurava. Indie de música independente e gente das pessoas que abraçam esse estilo de vida e de estética. Ao mesmo tempo, um indigente, como sabes, é alguém que vive na rua e que se aquece com uma manta rota. No fundo, a maioria da música que passa no programa está fora da que passa nas playlists das rádios, logo, é música sem abrigo.
E ao indicativo?
No indicativo queria ter uma música que não estivesse editada. Na altura, consultei um amigo de longa data, o Paulo Ventura, que conheço desde os 15 anos e que era manager de várias bandas, e perguntei-lhe se não tinha nenhuma capaz de fazer um indicativo para mim. Dois dias depois ligou-me a dizer “tenho algo que acho que serve”. Encontrei-me com ele e com o Pedro Temporão, dos Raindogs. Ouvi e fiquei rendido na hora. O indicativo do Indiegente tinha sido gravado num ensaio e até o violino está ligeiramente desafinado, mas penso que lhe dá uma beleza extra. O último elogio que tive ao indicativo foi da pessoa menos provável: há uns meses tive o Marky Ramone no programa, ele adorou e fez questão de o referir. Liguei logo ao Pedro Temporão a contar-lhe!
“Comecei a trabalhar na Antena 1 em Abril de 1991 e, pouco depois, começava o primeiro concurso de música moderna da Câmara Municipal de Lisboa, também conhecido como o concurso do Johnny Guitar. Foi aí que conheci o Henrique Amaro, o Zé Pedro, o Kalu e mais um “monte” de jornalistas e de músicos. Nessa altura, foi mesmo o entrar num admirável mundo novo”
Li em qualquer lado que para ti mais do um programa de música o Indiegente é hoje um programa de contra cultura…porquê?
Sim, durante grande parte da existência do Indiegente foi um programa de divulgação musical. Por diversas razões passei a ter algumas participações no programa. Algumas já acabaram, outras estão para começar e outras vão recomeçar. Na verdade, todas estas pessoas que colaboraram comigo nos últimos anos fizeram-no sem qualquer remuneração. Partilhamos o amor pela causa. A certa altura, para além da música havia literatura com o José Luís Peixoto, com quem aprendi muito sobre escritores que desconhecia. Já o Tiago Sério entrou com os comics e outros livros e publicações fora da cena mainstrem, o Jorge Amaral com os filmes de Série B e outras “chunguices”, além de outros colaboradores, como o Pedro Costa, o Rui Miguel Abreu, o Luís Futre, o Edgar Raposo, o Pedro Morcego com quem partilhei muitas emissões. Esta semana começa a colaboração do Chibanga. No fundo, o programa cresceu para lá da música, o que se calhar para mim nesta altura faz mais sentido. Além de que estou sempre aberto a sugestões.
Para a nossa geração um dos nomes incontornáveis da rádio que desempenhou um papel fundamental na divulgação dos novos sons foi o António Sérgio. Como foi privar de perto e aprender com o Mestre?
Falar do Sérgio é falar de um grande amigo. De alguém que me abriu as portas da sua casa, o coração da família que hoje em dia considero como a minha família. Ouvi muitos programas dele antes de o conhecer. Depois de o conhecer tive o privilégio de ter sido convidado para alguns dos seus programas e o prazer de ter trocado discos e conversas privadas com ele. Algumas vezes sobre rádio e a forma de a ver e muitas outras sobre como lutar contra algumas ideias que se têm sobre o que é possível ou não fazer em rádio. Foi, sem dúvida, um homem que viveu de acordo com os seus princípios e dedicou a vida profissional ao amor à música. Tive o privilégio de ter sido convidado três vezes para trabalhar com ele e apesar de a vida em duas delas ter nos conduzido para caminhos distintos, conseguimos trabalhar juntos na compilação do Indiegente… e o convite surgiu da parte do Sérgio! No fundo, privar com o Sérgio foi como privar com um amigo que te marca para a vida, não pelo facto do trabalho que desempenha, mas, a partir de determinada altura, pela pessoa que é.
Também tens um pézinho na televisão…gostas de te ver no pequeno ecrã?
Sim, tenho feito algumas coisas em televisão, sendo que algumas delas deram-me muito prazer a fazer. Os dois anos que estive no Curto Circuito foram muito especiais, os quais recordo com muita saudade, mas de uma forma saudável. Na altura, o ambiente entre a equipa era incrível. Posso dizer, sem problemas, que foi o local em que mais gostei de trabalhar até hoje, tudo por causa do ambiente. Gosto de desafios e quando me convidaram a primeira vez foi dessa forma que encarei o convite, como um desafio. Gosto de fazer o que tenho feito e tenho ideias para fazer outras coisas em televisão. Se gosto de me ver no pequeno ecrã…bom, isso é mais complicado…agora existem uns bem grandes… Gosto tanto de me ver em televisão, como de me ouvir na rádio, isto é, não gosto de chegar a casa e estar a fazer zapping e ver-me ali a olhar para mim, da mesma forma que não gosto de ir no carro e ouvir um programa gravado comigo.
És vaidoso Nuno?
Somos todos. Não vale a pena dizer que não, todos temos o nosso ego, todos temos a nossa vaidade. Não podemos é deixar que ambos sejam os líderes da nossa vida.
Festivais ou concertos de sala, o que preferes?
Cada coisa no seu devido lugar. Há concertos que quero ver em sala (na verdade é sempre mais confortável ver em sala), mas muitas vezes não é possível. Para ser correcto existem salas e salas, e festivais e festivais. Eu vou aos locais pelos cartazes e não para ir fazer sala, ver ou ser visto. Vou para trabalhar ou para me divertir, que neste caso são duas coisas que andam de mãos dadas.
O que é o projecto No DJs?
É algo que existe também por vontade de algumas pessoas que ao mesmo tempo que se querem divertir, pretendem mostrar que é possível fazer viagens musicais onde se dança sem se estar absolutamente agarrados às ditaduras das pistas de dança actuais. O projecto foi mudando ao longo dos anos, mantendo a ideia base que consiste em ter imagem e som. Hoje em dia quando meto som sem imagem sinto que falta uma parte de mim. As pessoas que actualmente trabalham comigo são fantásticas, quer pessoal quer profissionalmente. Confio cegamente neles, no Filipe Nabais, da Valise d’Image e no Luís Oliveira. Gosto de viver na base das emoções e é assim que escolho a música para cada set. No fundo, No Djs é um projecto onde se pode passar de tudo, do rock à electrónica, e onde as coisas se fundem. Fazemos uma viagem musical e visual.
Se pudesses acompanhar esta entrevista com uma música qual seria?
É sempre difícil escolher. Acho que poderia ser a Gravedigger’s Song, do Mark Lanegan, que adoro, ou a nova dos The Shins