17º Angrajazz: o jazz escutou-se na Terceira
Dos clássicos aos originais, das lendas vivas aos novos talentos – o 17º Angrajazz teve um pouco de tudo. A aproximar-se da maioridade, e com a consagração há muito no bolso, o festival terceirense fez desfilar por Angra do Heroísmo um interessante alinhamento para aficionados e curiosos do jazz.
Na sua 17ª edição, o Angrajazz voltou a fazer na cidade património de Angra do Heroísmo aquele que é o evento musical do jazz nos Açores. Durante três dias (que acabariam por se transformar em quatro), a Terceira recebeu um marco incontornável para público e músicos portugueses. Com a sala do Centro Cultural de Congressos sempre cheio, o jazz espalhou-se por toda a ilha e inundou mesmo as montras do comércio local, decoradas com saxofones ocasionais e outros instrumentos em reforma. A Terceira respirou jazz entre 1 e 4 de Outubro.
Orquestra Angrajazz
Orquestra Angrajazz abre primeira noite
A abertura do evento não poderia ter ficado a cargo de outro nome. A Orquestra Angrajazz, projecto que – como o nome diz – nasceu com o festival faz-se de talentos locais que, numa cidade sem escola de música jazz, aprendeu por si a fazer espectáculos como aquele que inaugurou o 17º Angrajazz – Festival Internacional de Jazz de Angra do Heroísmo. Com direcção de Claus Nymark (sempre aos comandos em cima do palco) e de Pedro Moreira (que tocou com os músicos), a orquestra passou por standards conhecidos, de forma competente e cativante. Depois de arrancar com “Long Ago and Far Away”, surge “Almost Like Being in Love”, temas passados por tantas vozes que perdemos o rasto às versões originais, como aliás acontecia no tempo de onde sai a maior parte deste alinhamento. Nessa época, valiam as vozes. E é a voz aveludada de Sara Miguel, vocalista da Orquestra Angrajazz, que aparece a representar temas como estes.
Vamos ouvir ainda “Come Rain or Come Shine” – clássico que revela uma orquestra homogénea e perfeitamente à vontade –, “Softly As In A Morning Sunrise”, “Always and Forever”, “Night and Day”, “Goodbye Pork Pie Hat”. A escolha dos standards parece ser ter sido feita a dedo, para dar destaque a cada um dos músicos do grupo.
Mas é com “Whisper Not” (Benny Golson) que surge um dos momentos especiais da apresentação, quando o convidado especial da orquestra se lança num solo mais expansivo do que apresenta até aí. Ricardo Toscano é o jovem saxofonista que capturou a atenção do jazz recente ao afirmar-se como talento promissor. Motivo para o destaque recebido na edição de 2015 do Angrajazz.
O final é anunciado com um encore em que “Take the A Train” (popularizado por Duke Ellington) junta Claus Nymark, Pedro Moreira e Ricardo Toscano ao centro do palco. Alternam entre si os solos que a música vai pedindo e fecham o primeiro espectáculo num tom de festa, antes de darem o lugar a René Urtreger.
René Urtreger
O pianista francês, cuja carreira inclui colaborações com Miles Davis, Dizzy Gillespie, Lester Young, Chet Baker e Buck Clayton, para destacar alguns, levou à Terceira o trio que compõe com Yves Torchinsky (num contrabaixo tão imponente quanto a sua altura) e Eric Dervieu (a liderar a bateria, num jeito impávido e inócuo). René Urtreger alternou entre standards e composições próprias, esquecendo-se frequentemente dos respectivos títulos. Aos 81 anos, o músico do bebop garantiu um tom animado (um francês com sentido de humor apurado) numa apresentação tranquila e longe de grandes emoções.
17º Angrajazz: As lendas vivas
Os nomes pesados do segundo dia do Angrajazz geraram o entusiasmo palpável na sala, momentos antes de subirem ao palco os músicos Jeff Denson Trio e, sobretudo, o seu convidado especial.
Jeff Denson
Jeff Denson, jovem contrabaixista e compositor americano, veio mostrar as suas recentes gravações ao Angrajazz. Com Dan Zemelman ao piano e Alan Hall na bateria, começou por apresentar “Blue Skies”. Encontra-se ao centro do palco, ladeado pelo seu contrabaixo, e entrega uma versão comum do clássico, que rompe ao cantar os versos tão conhecidos: “Blue skies/Smiling at me/Nothing but blue skies/Do I see”. Chama então ao palco Lee Konitz que graceja desde o início dizendo ao público que Denson é o novo Sinatra devido à sua interpretação de “Blue Skies”. A audiência sorri, vendo em Konitz uma empatia e familiaridade que contrastam com o currículo desta autêntica lenda viva.
Saxofonista (alto, tenor e soprano), Konitz tocou muito e gravou muito, com todos os nomes sonantes. Aos 87 anos, dá a mão a Jeff Denson – com quem mantém uma visível amizade – e puxa pelo grupo. As forças já são escassas e Konitz canaliza-as para o entretenimento entre músicas, lançando uma piada a cada intervalo do alinhamento. Cansado mas com uma jovialidade fascinante, acompanha as músicas entoando as sílabas emblemáticas do cool jazz. Di bi di do bop. E vai apontando ao trio o caminho a seguir.
Em Konitz, Denson vê claramente um mentor e uma fonte de inspiração. Vai beber também à obra do pianista Lennie Tristano (recuperando mesmo algumas das suas composições no Angrajazz), com quem Konitz gravou. A homenagem ao mestre chega já perto do final do concerto quando, depois de uma versão de “Nature Boy”, o trio agarra em “Subconscious-Lee”, que Lee Konitz gravou nos anos 50.
Sexteto de Jazz de Lisboa
É chegado um dos momentos altos do festival, quando entra em palco o Sexteto de Jazz de Lisboa – resgatado recentemente à memória dos anos 80. A reunião do grupo de Tomás Pimentel (trompete), Edgar Caramelo (saxofone), Mário Laginha (piano), Pedro Barreiros (contrabaixo) e Mário Barreiros (bateria) não é fiel à formação original. Hoje integra Ricardo Toscano, desde a morte de Jorge Reis, em 2014. Mais um motivo para a comoção de que se reveste o espectáculo do Sexteto, cujo reencontro surgiu a propósito do ciclo Histórias de Jazz em Portugal (que aconteceu entre 2014 e 2015).
O alinhamento tem por base Ao Encontro (1987), álbum único gravado pelo grupo e que hoje está envolto num certo misticismo. É quase impossível encontrá-lo por ter sido gravado apenas em vinil. De resto, a escolha das músicas aqui interpretadas é completada por algumas peças de arranjos originais e músicas inteiramente novas, como um tema de Mário Laginha.
“Véspera” é a primeira música que se faz ouvir e traz consigo um solo de Toscano, que arranca os primeiros aplausos de forte entusiasmo. Logo depois, em “Muda”, é a vez de Edgar Caramelo solar. Com “Tradição”, instala-se a calma no auditório e Ricardo Toscano tem um novo destaque. A integração do jovem saxofonista no grupo parece ter sido imediata e o entrosamento entre os músicos é notório. O espírito visionário que esteve na génese do Sexteto ainda hoje se mantém e é impressionante vê-lo.
O concerto é curto demais para o entusiasmo manifestado pelo público. Antes do final, o grupo traz ainda “Balada Para o Meu Filho”, de Laginha, e “4+3”, de Pimentel. O pianista e o trompetista dividiram entre si a autoria dos temas de Ao Encontro.
O encore vem com “Descolagem” para responder aos apelos do público que não quer deixar ir embora o grupo reunido. Mário Barreiros e Mário Laginha protagonizam um dos melhores momentos do espectáculo quando, nas laterais do palco, fazem um casamento perfeito entre a bateria e o piano. Um fim hipnotizante para um concerto especial.
O Angrajazz tem como intenção levar aos Açores os melhores músicos portugueses e internacionais. Por lá já passaram artistas como Herbie Hancock, Joe Lovano, Dave Holland, Benny Golson, Charles Lloyd. Mas, pela primeira vez em 17 anos, conta Miguel Cunha, da organização do festival, um imprevisto obrigou a uma mudança de planos de última hora. Gregory Porter, talvez o nome que o público mais esperava ver no festival, ficou retido nos Estados Unidos da América devido ao mau tempo e o seu voo não chegaria a tempo da actuação marcada para o encerramento do Angrajazz. A organização promoveu então o reagendamento do concerto do americano para 4 de Outubro, estendendo o Angrajazz por mais um dia.
Tord Gustavsen Ensemble
A 3 de Outubro, actuaram como previsto os músicos do Tord Gustavsen Ensemble. O grupo nórdico conseguiu preencher a noite e afastar qualquer nuvem de desilusão que pudesse surgir. Tord Gustavsen, pianista norueguês, é amplamente reconhecido um pouco por toda a Europa, sobretudo pelo tom calmo e discreto que imprime às suas composições. Foi essa mesma calma que instalou desde os primeiros acordes ao piano junto do público do Angrajazz, num solo cativante.
Este é um jazz mais organizado e estruturado do que aquele que por aqui tem passado nesta edição do festival. Nórdico, se quisermos. Tord Gustavsen vem impor rigor na música da indisciplina.
É acompanhado por Tore Brunborg (saxofone), Sigurd Hole (contrabaixo) e Siv Øyunn Kjenstad (bateria). Os músicos respeitam o ímpeto tranquilizante de Gustavsen. A bateria é calma, o saxofone confiante quando assim tem que ser, o contrabaixo sempre discreto. Quando se dirige ao público, Tord Gustavsen fá-lo num tom baixo, numa voz calma e hipnotizante que não quer romper a atmosfera de controlo e tranquilidade instalada.
Aqui não há espaço para grandes derivações. Estrutura é a palavra-chave mas que não se pense em rigidez. Todas as composições trazem uma melódica harmonia que nos embala até ao final da noite. Tord Gustavsen tem como mais recente trabalho Extended Circle, de 2014, mas em modo quarteto. Apresenta-se com este ensemble e também em trio, mantendo em todas as variações o cariz baladeiro, raro e requintado que imprime a cada uma das composições ouvidas no Angrajazz.
O final surpreende com um solo da baterista depois de duas horas de discrição total e, depois, com um lamento do saxofone, repetido pelo piano. Tord Gustavsen consegue arrancar ao palco um dos maiores aplausos ouvidos no festival.
Texto: Filipa Moreno
Fotos: Jorge Monjardino